Na vasta gama de recursos e géneros literários que o mexicano Carlos Fuentes abordou não faltam romances, teatro, ensaios e contos. A proposta de hoje é um excerto do livro "A Fronteira de Vidro", conjunto de contos em que são abordadas a vida e a forma como foi evoluindo a situação na fronteira entre México e Estados Unidos. Racismo muito antes de um vulgar ocupante da Casa Branca (o anterior a Joe Biden e agora de novo candidato) ter feito tudo para agravar uma relação tão recheada de ódios.
A obra de Carlos Fuentes é uma das mais respeitadas de autores da América Latina. O pai, Rafael Fuentes Boettiger, era um diplomata mexicano que estava em comissão de serviço no Panamá na altura do seu nascimento e Fuentes entrou no mundo a 11 de novembro de 1928, na cidade do Panamá. Devido à profissão paterna, a sua infância foi um rodopio por países das Américas: Argentina, Brasil, Chile, Equador, Uruguai ou Estados Unidos. Quando foi viver para o México já tinha 16 anos e começou a trabalhar como jornalista, embora viesse a ter formação em Direito e Economia.
A passagem pela Universidade leva-o a tomar contacto com os ideais marxistas e a filiar-se no Partido Comunista. Entre 1950 e 1952 representa o papel de membro da delegação mexicana da Organização Internacional do Trabalho, em Genebra.
Volta ao México em 1954, passa a ser assistente do ministro de Relações Exteriores e depois chefe do Departamento de Relações Culturais. Nessa altura estreia-se a publicar com "Los Días Enmascarados" que teve modesta tiragem de cinco centenas de exemplares. Em 1955 cria, com Octavio Paz e Emmanuel Carballo, a Revista Mexicana de Literatura. Desempenha o papel de assistente de diretor da Universidade Autónoma do México, mas passa a dedicar-se em regime de exclusividade ao trabalho de escritor em 1959, um ano depois de publicar "La Región más Transparente". Se a primeira obra fora bem aceite, a segunda tornou-o uma referência. "Las Buenas Conciencias" é do ano seguinte e Fuentes vai sempre escrevendo, publicando "La Muerte de Artemio Cruz" e "Aura" em 1962. Apaixonado pela literatura de Balzac e de Cervantes, com Gabriel García Márquez, Julio Cortázar, Octavio Paz e Mario Vargas Llosa, Fuentes integrou o boom da Literatura latino-americana nas décadas de 60 e 70. Aliás, ao longo da década de 60 foi vivendo em diferentes cidades europeias - Paris, Veneza e Londres -, tornando-se inclusive docente em Harvard, Cambridge e Princeton. Mas o caso do poeta cubano Heberto Padilla, desaparecido sob o regime de Fidel Castro, acabou por esfriar amizades entre alguns elementos do boom.
Seguem-se "Cantar de Ciegos" (1964), "Zona Sagrada" e "Cambio de Piel" (ambos de 1967), "La Nueva Novela Hispano-Americana" (1968), "Cumpleaños" e "El Mundo de José Luis Cuevas" (os dois de 1969), "Todos los Gatos son Pardos" e "La Casa con dos Puertas" (ambos de 1970), "Tiempo Mexicano" (1971), "Terra Nostra" (1975). Entre 1972 e 1976 exerce funções diplomáticas como embaixador mexicano em Paris, além de liderar a delegação na reunião do grupo dos 19 países em desenvolvimento na Conferência sobre Cooperação Económica Internacional. E nunca deixará de ser um crítico do Partido Revolucionário Institucional, aquele que mais tempo conduziu os destinos do seu país. Incondicional defensor da participação cidadã e da sua intervenção na evolução da sociedade,
"Una Familia Lejana" é de 1980. Em 1985 publica "O Velho Gringo", que seria adaptado ao cinema em 1989, com realização de Luis Puenzo e interpretações de Gregory Peck, Jane Fonda e Jimmy Smits. E prossegue sempre a sua escrita, indiferente à passagem do tempo, por vezes com algum interregno entre publicações e sempre com distinções pela sua obra (o Cervantes em 1987, Prémio Príncipe das Astúrias em 1994, Legião de Honra do Governo francês em 2003, D. Quixote de la Mancha em 2008 são apenas alguns exemplos): "Cristóbal Nonato" (1987), "La Campaña" (1990), "El Espejo Enterrado" e "Constância e Outras Novelas para Virgens" (ambos de 1992), "A Fronteira de Vidro" (1995, de que aqui se apresenta um trecho), "Diana ou a Caçadora Solitária" (1996), "Los Años con Laura Diaz" (1999), "Instinto de Iñez" (2001), "En Esto Creo" (2002), "La Silla del Águila" (2003), "Contra Bush" (2004), "Todas las Familias Felices" (2006), "La Voluntad e la Fortuna" (2008), "La Gran Novela Latino-Americana" (2011). Póstumos são "Aquiles ou o Guerrilheiro e o Assassino" e "Las Pantallas de Plata".
Publicações D. Quixote/Tradução de Maria do Carmo Abreu
"Ter viajado tanto logo nos primeiros anos da minha vida, devido às funções de diplomata do meu pai, ajudou-me a nunca perder o meu sentido de cidadão mexicano, mas sempre aberto ao mundo, às outras culturas, à ideia de ser cosmopolita", contou em entrevista de outubro de 2011.
A 14 de maio de 2012, uma segunda-feira, recebeu a distinção de doutor honoris causa pela Universidade das Ilhas Baleares. À noite, depois das duas horas de leitura que fazia de forma disciplinada em todos os dias úteis, juntou-se à mulher e viram lado a lado o filme argentino "La Guerra la Gano Yo", uma comédia de 1943. Durante a madrugada seguinte, sentiu uma indisposição e teve de ser transportado a um hospital na Cidade do México. Já não regressou a casa: aos 83 anos, vítima de hemorragia numa úlcera, morria Carlos Fuentes, numa altura em que começara a escrever um novo livro do qual chegou a falar em público, "El Baile del Centenario". Publicara mais de três dezenas de obras, repartidas por romance, ensaio, teatro e contos.
Depois da sua morte, o Governo mexicano criou um prémio literário com o seu nome. A viúva, Silvia Lemus, recordou a sua imensa paixão por cinema, "ilha onde podia descansar, divertir-se e talvez colocar a imaginação a funcionar, porque tivemos muitas experiências juntos no cinema e recordo como ele parecia estar tantas vezes a responder ao que se passava no ecrã". Gostava de Greta Garbo, Joan Crawford e Marlene Dietrich, mas "Bette Davis era a melhor". Admirava também realizadores como Capra, Lubitsch, Murnau, Buñuel e John Ford. E confessou a Silvia que "aquilo que mais gostaria de ter sido era ator".
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