A escritora Alice Vieira faz a leitura do excerto de uma obra do homem que foi seu marido e criou, em Portugal, a crítica televisiva. Mário Castrim teve longo percurso na comunicação social, além de escrever muito. Para crianças e para adultos.
Homem da Cultura, das letras, da palavra com rigor, sem receio de controvérsias, sempre direto ao assunto e fiel aos seus ideais comunistas, Mário Castrim era o pseudónimo de Manuel Nunes da Fonseca, nascido em Ílhavo, a 31 de julho de 1920. Jornalista, professor, escritor e crítico de televisão, viu muitas vezes os seus textos mutilados pela censura durante o período da ditadura. A trabalhar no Diário de Lisboa, em 1963 foi o responsável pela criação do suplemento Juvenil, base para a afirmação de numerosos futuros talentos literários. Alice Vieira, que seria jornalista e sua mulher, escreveu aos 14 anos um texto a tentar que ele o publicasse, mas a resposta foi negativa, embora lhe indicasse o caminho de continuar a tentar. Alice insistiu, trocaram muitas cartas e acabaram por conhecer-se quando a licenciada em Filologia Germânica começou a trabalhar no Diário de Lisboa. Porém, quando a ligação entre os dois ganhou dimensão, Alice atravessou a rua e foi trabalhar para o Diário Popular, conforme contou ao Público em 2012. "As pessoas, quando têm um relacionamento, não devem trabalhar no mesmo sítio. Seja marido e mulher, pai e filho", disse. Em 1966, conforme lembrou em entrevista ao Diário de Notícias publicada a 3 de agosto de 2018, foi para Paris, onde se encontrava Maria Lamas, sua prima e que era também escritora, tradutora, jornalista e militante pela causa feminista, além de grande lutadora contra a ditadura. Na referida entrevista ao Diário de Notícias contou como foi a experiência de viver o Maio de 68 na capital francesa e o tempo que ali passou. "Foi a liberdade completa", lembrou. "Foram anos que me enriqueceram muito: aquilo que se ouve, que se vê, as conversas que se têm", sintetizou. Nesse âmbito, não deixou de lembrar o convívio com personalidades como Pablo Neruda, Jorge Amado e a sua mulher, Zélia Gattai, ou Manuel Alegre.
Na conversa com Rita Pimenta para o diário Público em 2012 reconheceu ainda que fora desaconselhada a ligar-se a Castrim, sobretudo devido à diferença de 23 anos entre eles. Contudo, a vida encarregou-se de mostrar que tivera razão em ignorar os receios de outros. "Quando tive o 'cancro da praxe', ele é que foi o meu enfermeiro", contou. E transmitiu-lhe a força necessária para que pudesse ultrapassar as diversas fases da doença, em especial a da quimioterapia. Além disso, incentivou-a sempre a escrever, admitindo a autora com mais de três décadas a construir uma importante obra para público mais jovem - mas também de poesia, romance e crónicas - que sente "algum remorso por ele se ter afastado da escrita" para que ela se dedicasse aos livros.
Ainda assim, Castrim deixou escritos muitos livros para crianças e para elas fez também muito teatro radiofónico, mas também escreveu poesia, ensaios e crónica. Foi pioneiro na crítica televisiva, assinava todos os dias "O Canal da Crítica" no Diário de Lisboa, mostrando-se desassombrado a fazer as suas avaliações. Mais tarde, trabalharia para o Tal&Qual, sempre com o mesmo sentido de rigor na expressão escrita e no olhar para o que analisava.
Alice e Mário são pais da escritora Catarina Fonseca e do professor universitário André Fonseca e ganharam netos que ele não chegou a conhecer. Para Alice, o jornalismo continuou, depois do Diário Popular no Record e no Diário de Notícias, mas também no Jornal de Notícias e em revistas. Quanto à escrita de livros, essa ganhou decisivo impulso graças ao primeiro prémio que recebeu, em 1979, relativo a literatura infantil, vindo da Fundação Gulbenkian e entregue em função da obra "Rosa, Minha Irmã Rosa". Ambos cultivaram o contacto com as crianças como um privilégio, algo que Alice tem continuado a fazer com a ternura de sempre. E, sempre interessada em novos projetos, nesta fase de pandemia Alice Vieira está com Manuela Niza em Retratos Contados com as crónicas "Pó de Arroz e Janelinha" que já chegaram à Antena 1 e também podem ser seguidas via Facebook.
Editorial Caminho
Em entrevista que concedeu a Maria Augusta Silva em 1992, o crítico deixava um prognóstico sobre os novos canais que estavam a nascer: "Reservado. Muito reservado. A experiência mostra, em todo o mundo, que a mais televisão corresponde pior televisão", afirmou.
Formaram um casal equilibrado que se apoiou e completou. Ao Público, nesse junho de 2012, Alice afirmou-o com a simplicidade do que é natural. "Tive sorte. E ele também teve", referiu. Vítima de pneumonia, Mário morreu a 15 de outubro de 2002 com 82 anos.
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