Sarcástico, desalinhado, afastado de qualquer tentativa de controlo ou normalização, Mário-Henrique Leiria não escreveu muito, mas soube ser marcante. O ator Amílcar Mendes regressa ao trabalho literário do escritor.
Artista que caminhava por vias marginais na ficção, poesia e pintura, um surrealista sem regras com sentido de humor muito próprio nas histórias bem curtas, invulgares e estranhas: este é um possível retrato rápido de Mário-Henrique Leiria, cuja obra, produzida na década de 70, não é vasta, mas ainda assim conseguiu deixar marcas profundas.
Nascido a 2 de janeiro de 1923 em Lisboa, Mário-Henrique Baptista Leiria seria aluno da Escola Superior de Belas Artes, da qual recebeu ordem de expulsão em 1942 devido à sua atividade política contra a ditadura de Salazar. Assinou textos sob o pseudónimo de "Vovô Gasosa", conforme descobriria a professora e investigadora Tânia Martuscelli numa altura em que estudava a obra de António Maria Lisboa (mais tarde irá organizar a publicação da obra completa de Leiria). Com Mário Cesariny, Cruzeiro Seixas, António Maria Lisboa, entre outros, fundou o primeiro grupo de surrealistas em Portugal, nele participando entre 1949 e 1951 e ainda em 1962 (um ano depois de Cesariny publicar textos seus na "Antologia do Cadáver Esquisito"). Neste último caso, Mário-Henrique Leiria envolveu-se na organização da designada "Operação Papagaio", ao lado de nomes como António José Forte, Manuel de Castro ou Virgílio Martinho, cujo objetivo era o ataque ao Rádio Clube Português. Uma vez nas instalações, os infiltrados deveriam trocar o programa "Companheiros da Alegria" por marchas militares, o hino nacional e, com intervalos de cinco minutos, informação atualizada acerca de tropas que avançavam com um golpe de Estado para acabar com a ditadura. Ao mesmo tempo seriam dirigidos convites para que o povo saísse à rua e fosse gritar o seu apoio aos protagonistas do golpe e ao novo regime. Porém, a PIDE foi alertada para o plano e abortou-o, detendo os participantes. Posto em liberdade, Leiria viajou para o Brasil, tendo sido editor literário e encenador antes do regresso a Portugal em 1970. Três anos depois publica "Contos do Gin-Tonic", colaborando num suplemento do jornal República e no semanário de teor humorístico "Pé de Cabra". O livro "Novos Contos do Gin" sai em 1974 e Mario-Henrique Leiria é chefe de redação do semanário O Coiso no ano seguinte. De 1975 são "Imagem Devolvida, Conto de Natal para Crianças", "Casos de Direito Galáctico" e "O Mundo Inquietante de Josela".
Torna-se membro do Partido Revolucionário Proletário em 1976, mas uma doença óssea interfere de forma decisiva na sua vida. Confinado a viver com a mãe e uma tia, duas idosas, acaba por morrer uma semana depois de completar 57 anos, a 9 de janeiro de 1980.
"Nos contos a gente consegue visualizar uma história", contou Tânia Martuscelli à RTP no programa "Literatura Aqui", de 2017, "não só aquela que está ali, no papel, mas o antes, o durante e o depois. São contos curtos, mas a genialidade do Leiria nos permite perceber esse mundo que ele está retratando. E isso é incrível na Literatura." Além disso, "a novela do Leiria é muito interessante. Primeiro, é um texto inacabado, mas suficientemente acabado para ser lido como novela, porque as personagens são bem construídas e têm uma profundidade que já aparece nos capítulos iniciais e uma narrativa já com sequência. Mas tem alguns traços de fin de siècle, alguma coisa decadentista, mais do que propriamente de vanguarda ou surrealista", esclareceu a professora. Martuscelli identifica ainda "peças que se aproximam do teatro do absurdo, porque há muito nonsense". De acordo com Tânia Martuscelli, o seu legado relaciona-se com o "questionamento da sociedade, assumir o seu papel político na sociedade e tratar a arte não como algo impossível, mas algo que faz parte do quotidiano".
A obra de Mário-Henrique Leiria passou por aqui noutras duas ocasiões: a estreia foi a 30 de maio de 2020 pela voz de Filipe Dias com "Contos do Gin-Tonic" e a segunda oportunidade surgiu a 5 de junho do ano passado com "Gin sem Tónica, mas Também", lido por Amílcar Mendes.
Editorial Estampa
Vivendo com a mãe e uma tia, Mário-Henrique Leiria morreu a 9 de janeiro de 1980 com apenas 57 anos.
Amílcar Mendes, ator e "dizedor de poesia", que também foi coordenador das noites de Poesia do Pinguim Café e do Púcaros Bar, no Porto, deixa-nos uma leitura diferente. A sua estreia aqui no blog registou-se a 5 de junho do ano passado com um excerto de "Gin sem Tónica, mas Também", de Mário-Henrique Leiria. Do dia 3 de julho é a leitura de "Poemas de Ponta & Mola", de Mendes de Carvalho, seguindo-se "Poema do Gato", de António Gedeão, a 7 de julho; "Funeral", de Dinis Moura, a 14 de julho; a 24 desse mês, a escolha recaiu em "Quadrilha", de Carlos Drummond de Andrade; voltou à aposta em António Gedeão com "Trovas para Serem Vendidas na Travessa de São Domingos" a 6 de agosto; a 10 de setembro, o poema "Árvore", de Manoel de Barros, foi a proposta. "Socorro", de Millôr Fernandes, foi a escolha de dia 11 de outubro e, a 29, foi apresentado "História do Homem que Perdeu a Alma num Café", de Rui Manuel Amaral. A 7 de novembro, Amílcar Mendes trouxe "A História é uma História", de Millôr Fernandes. "Aproveita o Dia", de Walt Whitman, foi a proposta a 27 de novembro. No dia 15 do mês seguinte, Amílcar Mendes leu "A Princesa de Braços Cruzados" , de Adília Lopes. A 19 surgiu "A Morte do Pai Natal", de Rui Souza Coelho. Quase um mês depois, a 17 de janeiro, apresentou "Uma Faca nos Dentes", de António José Forte. A 8 de fevereiro leu o poema "Não Cantes", de Al Berto. No dia 20, apresentou "Ano Comum", de Joaquim Pessoa.
Comments