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Paulo Jorge Pereira

"Caligrafia dos Sonhos", de Juan Marsé

Considerado o mais autobiográfico trabalho do catalão Juan Marsé, um trecho de "Caligrafia dos Sonhos" é a proposta para leitura que hoje aqui regressa.



Pode ser sob a forma de romance ou de conto, mas a escrita de Juan Marsé nunca é aborrecida - é atraente, tem largos períodos de elegância, chega a ser sedutora. E estas qualidades foram conquistando leitores um pouco por todo o mundo para que o escritor catalão se afirmasse no universo literário. Marsé não é o seu apelido de origem: chamaram-lhe Juan Faneca Roca, mas a mãe morreu para que ele nascesse, a 8 de janeiro de 1933, e o pai entregou-o para adotação ao casal Pep Marsé e Alberta Carbó, que tinham acabado de perder um filho. Aí, o seu destino alterou-se. O diário El País recordou que "uma das suas memórias mais antigas era a de estar a chorar na varanda de casa, tal como o paí, quando as tropas fascistas entraram triunfantes em Barcelona, a 26 de janeiro de 1939".

Mais tarde, até poderia ter-se dedicado para sempre à produção de joias como ourives, uma vez que trabalhou nesse ofício, bem longe da escrita, começando ainda adolescente. Nas brincadeiras com os amigos, como Camus e Nabokov, foi guarda-redes em jogos de futebol que nunca terminaram, pelo menos na sua imaginação. Porém, a descoberta de autores como Wallace, Verne ou Salgari, e também a atração pelas revistas, o brilho de publicar ideias suas, de permitir que outros saboreassem o seu talento e de ir construindo pequenos artifícios foi o caminho mais curto para a Literatura. Ínsula e El Ciervo foram, assim, os seus primeiros veículos para a arte de bem escrever e aos 22 anos, em pleno serviço militar no Norte de África (Ceuta), iniciou "Encerrados con un solo juguete", que se transformaria na sua estreia em romance três anos mais tarde. Não ganhou o prémio a que se apresentou, mas o estatuto de finalista assegurou-lhe a chegada ao público sob a forma de livro e nunca mais parou.

Ia desbravando caminho para alimentar admiradores e, com apoio inestimável de uma amiga, a escritora Paulina Crusat, o seu conto "Nada para Morir" acabou por ser distinguido com o galardão Sésamo - corria o ano de 1959 e, 12 meses depois, Marsé afastou-se finalmente da joalharia, fixando-se na Cidade-Luz. Antes, no entanto, outro jovem jornalista que haveria de ser escritor de sucesso entrevistou-o para o Solidarid Nacional, referindo-se a Marsé como "joalheiro até às 3 da tarde, romancista das três às nove". O texto era assinado por Manuel Vázquez Montalbán, o criador do detetive Pep Carvalho, que já passou aqui pelo blog e irá regressar um destes dias...

Procurava inspiração para novas aventuras literárias, mas, pelo menos nos primeiros tempos, foi trabalhar para o Instituto Pasteur e foi equilibrando rendimentos com base no Cinema (traduzia argumentos) e na Educação (era professor de língua espanhola).

Contudo, a sua presença em Paris durou apenas dois anos, embora lhe permitisse publicar, logo após estar de volta a solo espanhol, "Esta Cara de la Luna". Descobriu-se militante do Partido Comunista em Barcelona e "Últimas Tardes con Teresa" valeu-lhe mais um prémio. Tornou a diversificar e ampliar as suas áreas de atuação, não só com a escrita de argumentos para Cinema - antes apenas traduzia -, mas também com a dedicação à publicidade. Na asfixiante ditadura de Franco, o escritor tornou-se chefe na redação da revista Bocaccio, recuperando os tempos de fascínio vividos na juventude, publicando mais duas obras: "La Oscura Historia de la Prima Montse" e "Si te Dicen que Caí" (este foi atingido pela censura e Marsé teve de encontrar uma alternativa, publicando-o no México em tão boa hora que garantiu o Prémio Internacional de Romance).

Um ano antes do desaparecimento do sinistro ditador, Juan Marsé exercitava a sua vasta capacidade de escrita na revista Por Favor, seguindo-se um empenhamento mais direto na 7.ª Arte como forma de reforçar o seu sustento. "La Muchacha de las Bragas de Oro" dá-lhe o Prémio Planeta e a fatia de popularidade de que ainda necessitava. Os seus livros passam a ser seguidos como verdadeiros acontecimentos, as vendas crescem, o número de admiradores também. O começo da década de 80 apanha-o em "Un Dia Volveré", "Ronda del Guinardó" ou "Teniente Bravo". E começa a ter problemas cardíacos. Mas é claro que não se ficará por aqui: "O Amante Bilingue" é de 1990 e chegam mais distinções com base na obra "O Feitiço de Xangai" (1993).


D. Quixote


Em 2008, ao ser distinguido com o Prémio Cervantes, explicou as motivações que o levaram a ser escritor: "Foi por causa estar desajustado da realidade que me rodeia, o meu país, a minha cidade, a minha época... Isso levou-me a encontrar na literatura um mundo de experiências que não tive, mas que sonhei", lembrou o diário El País em 2020, quando Juan Marsé morreu.

Nunca perde o entusiasmo na escrita, o brilhantismo da frase quase perfeita, a sedução de uma prosa bem articulada e até sonhadora. Do lado de lá do Atlântico é reconhecido com a máxima distinção (Prémio Juan Rulfo) já perto do final dos anos 90, numa fase em que as questões cardíacas voltam a manifestar-se, e apresenta "Rabos de Lagartixa" em 2000. Vai exercitando o músculo literário durante muito tempo com trabalhos como "Canções de amor no Lolita's Club" (2005). Três anos depois é-lhe atribuído o Prémio Cervantes e chega a comentar-se que "só lhe falta o Nobel". "Caligrafia dos Sonhos", de que aqui se apresenta um trecho, surge após um interregno, em 2011, e antes de "Notícias Felizes em Aviões de Papel" (2014) ou "Uma Puta Muito Querida" (2015). Só então a passagem do tempo se manifesta sob a forma de insuficiência renal. Bravo como poucos, enfrenta a doença com os dentes cerrados. Dá luta. Mas a doença impõe-se à sua vontade e o escritor morre no hospital de Sant Pau de Barcelona, a 18 de julho de 2020. O peruano Mario Vargas Llosa dita o epitáfio inigualável: "Com a morte de Marsé, Barcelona fica vazia."

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