top of page
Search
Paulo Jorge Pereira

Filipe Dias lê "Contos do Gin-Tonic", de Mário-Henrique Leiria

Sarcástico, desalinhado, afastado de qualquer tentativa de controlo ou normalização, Mário-Henrique Leiria não escreveu muito, mas soube ser marcante. O jornalista Filipe Dias apresenta um dos característicos contos curtos do escritor.



Artista que caminhava por vias marginais na ficção, poesia e pintura, um surrealista sem regras com sentido de humor muito próprio nas histórias bem curtas, invulgares e estranhas: este é um possível retrato rápido de Mário-Henrique Leiria, cuja obra, produzida na década de 70, não é vasta, mas ainda assim conseguiu deixar marcas profundas

Nascido a 2 de janeiro de 1923 em Lisboa, Mário-Henrique Baptista Leiria seria aluno da Escola Superior de Belas Artes, da qual recebeu ordem de expulsão em 1942 devido à sua atividade política contra a ditadura de Salazar. Assinou textos sob o pseudónimo de "Vovô Gasosa", conforme descobriria a professora e investigadora Tânia Martuscelli numa altura em que estudava a obra de António Maria Lisboa (mais tarde irá organizar a publicação da obra completa de Leiria). Com Mário Cesariny, Cruzeiro Seixas, António Maria Lisboa, entre outros, fundou o primeiro grupo de surrealistas em Portugal, nele participando entre 1949 e 1951 e ainda em 1962 (um ano depois de Cesariny publicar textos seus na "Antologia do Cadáver Esquisito"). Neste último caso, Mário-Henrique Leiria envolveu-se na organização da designada "Operação Papagaio", ao lado de nomes como António José Forte, Manuel de Castro ou Virgílio Martinho, cujo objetivo era o ataque ao Rádio Clube Português. Uma vez nas instalações, os infiltrados deveriam trocar o programa "Companheiros da Alegria" por marchas militares, o hino nacional e, com intervalos de cinco minutos, informação atualizada acerca de tropas que avançavam com um golpe de Estado para acabar com a ditadura. Ao mesmo tempo seriam dirigidos convites para que o povo saísse à rua e fosse gritar o seu apoio aos protagonistas do golpe e ao novo regime. Porém, a PIDE foi alertada para o plano e abortou-o, detendo os participantes. Posto em liberdade, Leiria viajou para o Brasil, tendo sido editor literário e encenador antes do regresso a Portugal em 1970. Três anos depois publica "Contos do Gin-Tonic", colaborando num suplemento do jornal República e no semanário de teor humorístico "Pé de Cabra". O livro "Novos Contos do Gin" sai em 1974 e Mario-Henrique Leiria é chefe de redação do semanário O Coiso no ano seguinte. De 1975 são "Imagem Devolvida, Conto de Natal para Crianças", "Casos de Direito Galáctico" e "O Mundo Inquietante de Josela".

Torna-se membro do Partido Revolucionário Proletário em 1976, mas uma doença óssea interfere de forma decisiva na sua vida. Confinado a viver com a mãe e uma tia, duas idosas, acaba por morrer uma semana depois de completar 57 anos, a 9 de janeiro de 1980.

"Nos contos a gente consegue visualizar uma história", contou Tânia Martuscelli à RTP no programa "Literatura Aqui", de 2017, "não só aquela que está ali, no papel, mas o antes, o durante e o depois. São contos curtos, mas a genialidade do Leiria nos permite perceber esse mundo que ele está retratando. E isso é incrível na Literatura." Além disso, "a novela do Leiria é muito interessante. Primeiro, é um texto inacabado, mas suficientemente acabado para ser lido como novela, porque as personagens são bem construídas e têm uma profundidade que já aparece nos capítulos iniciais e uma narrativa já com sequência. Mas tem alguns traços de fin de siècle, alguma coisa decadentista, mais do que propriamente de vanguarda ou surrealista", esclareceu a professora. Martuscelli identifica ainda "peças que se aproximam do teatro do absurdo, porque há muito non sense". De acordo com Tânia Martuscelli, o seu legado relaciona-se com o "questionamento da sociedade, assumir o seu papel político na sociedade e tratar a arte não como algo impossível, mas algo que faz parte do quotidiano".


Editorial Estampa

"Uma garrafa de gin/estava a preocupar/o pescador/a garoupa e o rodovalho/não tinham aparecido/pró jantar/que fazer?/telefonou ao ministro/estava a trabalhar/na cama/com a mulher/foi então/que a garrafa de gin/sugeriu discretamente/porque não/telefonar ao presidente?/telefonaram/o presidente da nação/estava em acção/na cama/com a mulher/nessa altura/até que enfim/encontraram a solução/o pescador/foi para a cama/com a garrafa de gin", escreve em "Gin sem Tónica".

O jornalista Filipe Dias esteve aqui no dia 28, então só através da escrita, num dos seus inúmeros inéditos que aguardam apenas uma editora.

80 views0 comments

Recent Posts

See All

Comments


bottom of page