Tinha 82 anos quando foi premiada com o Nobel em 2013 e, porque a saúde não lho permitia, teve de ser a filha Jenny a viajar até Estocolmo para receber o galardão. A distinção a Alice Munro encheu de alegria quem acompanhava os seus contos desde as primeiras publicações, ainda nos anos 60.
"Foi preciso esperar mais de uma centena de anos, mas, finalmente, o Nobel da Literatura premeia uma pura escritora de contos", regozijou-se Jonathan Franzen, romancista norte-americano que escrevera em 2004, no New York Times, um artigo apaixonado sobre a escrita da autora canadiana, como lembrou Lisa Allardice em 2013 no diário The Guardian. Não era a primeira manifestação de admiração por Alice Munro, mas, por entre o entusiasmo suscitado com a conquista do Nobel, tornou-se a recordação mais emblemática. Anos antes, em 2006, numa entrevista concedida a Allardice após a publicação de "A Vista de Castle Rock", não parecia possível que Munro, colocando a si própria inúmeras dúvidas, continuasse a sua vida literária. "Quanto tempo da minha vida gastei seguindo esta estrada, que outras coisas poderia ter feito, e que quantidade de energia retirei a outras coisas?", interrogava-se a escritora. "É muito estranho pensar nisto agora, porque as minhas filhas estão adultas, não precisam de mim à sua volta, e no entanto tenho a sensação de que vivi apenas uma parte desta vida e existe outra que não vivi", acrescentava. Seis anos mais tarde, quando entregou "Amada Vida" a Douglas Gibson, seu editor de muitos anos, disse-lhe que era o seu último livro e este acreditou.
Alice Ann Laidlaw - só seria Munro mais tarde - nasceu a 10 de julho de 1931, na localidade de Wingham. Os primeiros anos da sua existência, marcados pela depressão económica, foram passados numa quinta próxima. Cedo teve de apelar à coragem para enfrentar o quotidiano, porque a mãe, afetada pela doença de Parkinson de forma prematura, deixou de poder ocupar-se da família. Tinha nove anos quando assumiu a responsabilidade de cuidar da irmã e do irmão mais novos. "A relação com a minha mãe é, talvez, o material que mais aproveitei para os livros", contou na entrevista de 2006. "Quando estamos a crescer, é preciso que nos afastemos daquilo que a nossa mãe pretende ou precisa, temos de seguir o nosso próprio caminho, e penso que foi isso que fiz", acrescentou. "Claro que ela estava numa posição muito vulnerável, mas que era também, em certo sentido, uma posição de poder. Isso foi sempre uma questão central da minha vida, o facto de a ter deixado quando precisava de mim. Mas continuo convencida de que sair foi a minha salvação", recordou. Não a visitou na fase terminal da doença, nem marcou presença no seu funeral. "Em muitos aspetos, passei toda a minha vida a escrever histórias pessoais", admitiu. E a jornalista reconhece que os seus livros são um retrato fiel do que se foi passando com a sua existência - desde as referências já indicadas até à forma como obteve uma bolsa para entrar na universidade, o casamento com Jim Munro, em 1951, com apenas 20 anos, as mudanças para Vancouver e para Victoria, onde o marido abriu uma livraria, o facto de ter sido mãe ainda muito jovem ou o fim do casamento em 1973.
Mãe de três filhas aos 26 anos no primeiro casamento (uma outra morreu com dois dias de existência), soubera estar atenta e ler o que considerava fundamental para a sua escrita, incluindo autoras como Carson McCullers, Flannery O'Connor ou Eudora Welty. Tentou empenhar-se mais na vida literária (que começara nos anos 50, mas só tivera a primeira publicação em 1968 com "Dance of the Happy Shades"), mas uma das filhas, que publicou um livro de memórias, conta que a mãe "tinha a máquina de escrever ao lado da máquina de lavar roupa, do secador e de uma tábua de engomar". Em 1961, depois de algumas histórias suas serem apresentadas em jornais locais e na rádio, o Vancouver Sun dedicou-lhe um artigo cujo título, conforme lembra Allardice, era: "Doméstica arranja tempo para escrever contos". Voltou à sua universidade, mas passou por uma fase de depressão em que se lhe tornou muito difícil escrever. Tentou várias vezes escrever um romance, mas não encontrou o tom e o ritmo certos. à leitura de Edna O'Brien e William Maxwell atribui o facto de ter conseguido ultrapassar esses momentos delicados, regressando à escrita com "Vidas de Raparigas e Mulheres". Divorciou-se de Jim e foi ensinar escrita criativa na Universidade de Toronto, mas ficou poucos meses. Contudo, conheceu Gerald Fremlin, a primeira pessoa a quem enviara o seu trabalho quando ele era responsável pelo jornal universitário, tendo recebido elogios como a comparação a Anton Tchekhov. Foi viver com Gerry em Clinton, na casa onde ele nascera e a mãe se encontrava doente, a partir de agosto de 1975, voltando a casar-se em 1976, ano do primeiro contrato de edição assinado com Douglas Gibson.
Num novo contexto familiar e social, tornou a absorver cada minúscula partícula do quotidiano, inspiração que sempre considerou "mais do que suficiente" para escrever os seus textos de fôlego mais contido, mas com forte impacto. "Talvez escreva histórias em que as pessoas se sentem envolvidas", disse a Lisa Allardice. "Talvez sejam a complexidade e as vidas que aparecem nessas histórias. Espero que emocionem as pessoas. Posso falar por mim - quando gosto de uma história é porque me atingiu com força no peito", salientou. Apesar de se mostrar cética quanto à possibilidade de continuar a escrever, não deixou de publicar livros. Em 2009 recebeu o Man Booker Prize Internacional. Porém, em abril de 2013, a sua vida sofreu rude golpe quando Gerry Fremlin, o segundo marido de quem se sentia tão próxima, morreu aos 88 anos. Precisou de ir buscar forças ao mais fundo de si própria para manter o equilíbrio emocional. O Nobel, concedido meses depois, foi uma ajuda inesperada. A mulher que, segundo revela, sabia desde os 14 anos que pretendia ser escritora, ainda tinha histórias para contar. E continuou a fazê-lo. Porque agora já não se erguiam os obstáculos desse tempo quando "não se devia despertar atenções" sobre si própria. Fosse por "ser canadiana, mulher ou até pelas duas".
Companhia das Letras/Tradução de Sérgio Flaksman
"Não creio que seja capaz de escrever mais. Dentro de dois ou três anos serei demasiado velha e estarei demasiado cansada", confessou Munro em entrevista ao diário The Guardian em 2006. Tinha 75 anos. Depois disso, já publicou outros dois livros. Tem 90.
Em Portugal, a Relógio d'Água publicou nove obras de Munro: "Fugas", em 2007 (a edição que se lê no vídeo é a brasileira e tem como título "Fugitiva"), "O Amor de uma Boa Mulher" (2008), "A Vista de Castle Rock" (2009), "Demasiada Felicidade" (2010), "O Progresso do Amor" (2011), "Amada Vida" (2013) e, todas em 2014, "Vidas de Raparigas e Mulheres", "Falsos Segredos" e "Ódio, Amizade, Namoro, Amor, Casamento".
Aqui no blog já teve direito a leitura em janeiro deste ano
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