Com a bárbara agressão que a Rússia de Putin protagoniza contra o martirizado povo da Ucrânia, aqui fica a maravilhosa "Ode à Paz", escrita por Natália Correia num outro contexto. Esta leitura foi a minha participação na Semana da Leitura do PNL2027 que hoje termina.
Carismática figura da Cultura, jornalista, escritora de poesia, ficção e teatro, ensaísta, declamadora de alto nível, divulgadora de Literatura, tradutora, deputada no Parlamento por dois partidos (PPD/PSD e PRD) e apresentadora de programas televisivos (o mais famoso seria o Mátria), Natália de Oliveira Correia foi uma espécie de força da natureza, nasceu na Fajã de Baixo, em Ponta Delgada, na ilha açoriana de São Miguel, a 13 de setembro de 1923. Como o pai foi para o Brasil, Natália, a mãe e uma irmã vieram para Lisboa quando a futura escritora tinha apenas 11 anos. "Aventuras de um Pequeno Herói" (1945), um livro para os mais jovens, seria a sua estreia na ficção. Casara-se pela primeira vez em 1942 com Álvaro Santos Pereira, mas a relação acabou por não dar certo e, em 1949, casou-se pela segunda vez com William Creighton Hyler. Este casamento durou ainda menos tempo e, a 31 de julho de 1953, já o seu marido era Alfredo Machado, um empresário oriundo da Guarda e dono do Hotel do Império, projetado na rua Rodrigues Sampaio, em Lisboa, pelo arquiteto Cassiano Branco.
Jornalista no Rádio Clube Português, a sua oposição à ditadura de Salazar manifestou-se bem cedo com a participação em movimentos como o MUD, mas também com o apoio às candidaturas à Presidência de Norton de Matos (1949) e do general Humberto Delgado (1958) ou ainda à CEUD (1969), pelo que a PIDE manteve-a sempre debaixo de olho. O seu ativismo político e o combate que sempre travou contra a opressão e o conservadorismo iriam ganhar uma nova dimensão quando, em 1966, foi condenada a prisão com pena suspensa por causa da sua "Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica" (mais tarde organizaria outras antologias poéticas como a dos "Cantares dos Trovadores Galego-Portugueses" ou a "Antologia da Poesia do Período Barroco"), depois de ter sido também penalizada pelo papel desempenhado no apoio à edição das "Novas Cartas Portuguesas" - era diretora literária nos Estúdios Cor, responsável pela primeira edição -, no processo que ficou conhecido como o das "três Marias", autoras da obra: Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa. A história foi recordada na série de ficção "3 Mulheres", que a RTP filmou em 2018, dedicada a Natália Correia, Snu Abecassis e Maria Alexandra Falcão, cujo pseudónimo foi Vera Lagoa, nos seus percursos de vida entre 1961 e 1973.
Um espírito livre, desassombrado, intransigente defensora do feminismo, em 1971 abriu o bar Botequim, no qual era figura central em intervenções de âmbito cultural e tertúlias em que se reuniam personalidades da Cultura, mas também da política.
Depois do 25 de Abril, a sua intervenção em nome da Cultura e do feminismo prosseguiu de forma incansável e, no plano político, situou-se próxima do PS. Numa fase de crise no PPD-PSD em que diversos militantes se afastaram e Sá Carneiro regressou, Natália Correia, que lhe apresentara a sua editora, Snu Abecassis, por quem o então líder dos sociais-democratas se apaixonou, acabou influenciada por aquela história de amor e apoiou Sá Carneiro, sendo eleita deputada pelo seu partido entre 1979 e 1983. É famosa a réplica que deu a João Morgado, então deputado no CDS, quando este defendeu no plenário da Assembleia da República, a 3 de abril de 1982, em pleno debate sobre a despenalização do aborto, que "o ato sexual é para ter filhos". Natália Correia nem hesitou e a sua resposta surgiu sob a forma do seguinte poema:
Já que o coito - diz Morgado -
tem como fim cristalino,
preciso e imaculado
fazer menina ou menino;
e cada vez que o varão
sexual petisco manduca,
temos na procriação
prova de que houve truca-truca.
Sendo pai só de um rebento,
lógica é a conclusão
de que o viril instrumento
só usou - parca ração! -
uma vez. E se a função
faz o órgão - diz o ditado -
consumada essa excepção,
ficou capado o Morgado.
Interessava-lhe menos a política do que a Cultura e, cansada do conservadorismo em diversos setores dos sociais-democratas, acabou por afastar-se do partido, mesmo que se mantivesse como deputada independente, sendo com este estatuto reeleita para a Assembleia da República nas listas do PRD entre 1987 e 1991. Entretanto, viúva desde a morte do marido, a 17 de fevereiro de 1989, iria ainda casar-se uma quarta vez, em 1990, com Dórdio Guimarães, jornalista, escritor, cineasta e filho do também realizador Manuel Guimarães.
Ao longo dos anos, escreveu e publicou dezenas de obras nos diversos géneros em que se distinguiu, vendo o seu trabalho várias vezes visado pela Censura. Na poesia incluem-se, por exemplo, "Rio de Nuvens" (1947), "Cântico do País Emerso" (1961), "Mátria" (1967), "O Vinho e a Lira" (1969), "A Mosca Iluminda" (1972), "Poemas a Rebate" (1975), "O Dilúvio e a Pomba" (1979) ou "Sonetos Românticos" (1990). Numa entrevista a propósito do lançamento deste livro, quando o entrevistador dizia que não era lida pelo grande público, Natália não o deixou completar a frase e disparou: "Como é que você sabe? Fez inquéritos? Se calhar sou mais lida pelo povo do que pelos falsos intelectuais." Na ficção, "Anoiteceu no Bairro" (1946), "A Madona" (1968), "A Ilha de Circe" (1983), de que aqui já foi apresentado um excerto, contos com "Onde Está o Menino Jesus?" (1987) e ainda o romance "As Núpcias" (1992); na literatura de viagens, "Descobri que era Europeia: As Impressões de uma Viagem à América" (1951); no ensaio, "Poesia de Arte e Realismo Poético" (1959) ou "Somos Todos Hispanos" (1988); na dramaturgia, "O Homúnculo" (1965) ou "Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente" (1981). "Ode à Paz", o poema que hoje aqui se apresenta, consta de "Inéditos (1985/1990)".
Indomável, insubmissa, desafiadora de convenções e estereótipos, Natália Correia é não apenas um nome grande da Literatura, mas em simultâneo uma voz eterna em defesa dos direitos das mulheres e contra o patriarcado.
Certa noite, a 16 de março de 1993, de regresso a casa vinda do Botequim, no Largo da Graça, Natália Correia foi traída pelo coração. Morria, a meses de completar 70 anos, uma das mais notáveis vozes do Portugal contemporâneo. Mas a sua obra e os seus ideais perduram.
A sua obra já teve aqui uma primeira leitura a 8 de março do ano passado, Dia Internacional da Mulher, quando Inês Henriques apresentou "A Ilha de Circe".
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