É com um heterónimo de Fernando Pessoa que volta uma leitura de Patrícia Adão Marques: neste caso, "Carta da Corcunda para o Serralheiro", assinada por Maria José.
Na origem de um universo complexo, formado por diferentes temáticas e numerosos heterónimos, está um dos principais nomes da poesia lusófona e figura central do movimento modernista, Fernando António Nogueira Pessoa, nascido no quarto andar do número 4 do Largo de São Carlos, o edifício em frente ao Teatro Nacional de São Carlos, a 13 de junho de 1888, em Lisboa. A infância foi atribulada, pois, com apenas cinco anos, Pessoa perdeu o pai, Joaquim de Seabra Pessoa, vítima de tuberculose, e também o irmão Jorge, no ano seguinte. Com dificuldades financeiras, a mãe, Maria Madalena, mudou-se para o número 104 da rua de São Marçal e iria casar-se com João Miguel Rosa a 30 de dezembro de 1895. Viveu durante nove anos na cidade sul-africana de Durban, pois ali o seu padrasto desempenhava a missão de cônsul. Tornou-se fluente também em inglês, foi um estudante notável numa escola católica irlandesa, criou o pseudónimo Alexander Search, começou a escrever poesia em inglês e perdeu uma irmã, Madalena Henriqueta, que morreu com dois anos. Volta a Lisboa com a família para férias e aqui nasce João Maria, quarto filho do segundo casamento da mãe. Visitam os Açores e Tavira para contactar com familiares, mas o jovem Fernando, sentindo que a mãe lhe dedica menos atenção, começa a ficar distanciado do resto da família. De tal forma que fica em Lisboa algum tempo mesmo depois de os outros familiares voltarem para Durban. Quando regressa, estuda durante o dia na área de Letras com o objetivo de se tornar universitário, mas à noite está na Durban Commercial School. Com o nome de David Merrick faz tentativas de escrita de contos e, em 1903, falha a entrada na Universidade do Cabo, embora seja agraciado com o prémio Rainha Vitória porque o seu ensaio em inglês obtém a melhor classificação entre mais de oito centenas de candidatos. Passa outro ano na escola em solo sul-africano e aprofunda conhecimentos de Literatura antes de viajar sozinho para Lisboa onde irá viver com uma avó e duas tias.
Aos 17 anos, tenta o curso superior de Letras, mas deixa-o ao fim de um ano sem sucesso. Passa para uma aprendizagem por conta própria, "devorando" na Biblioteca Nacional livros sobre disciplinas que o fascinavam: Filosofia, Literatura, Sociologia e Religião. Não tardou a aventurar-se no universo da escrita - primeiro, pelo lado da crítica (1912); depois, pela via da prosa criativa (uma parcela do "Livro do Desassossego", publicada no ano seguinte); e logo com a publicação de poemas (1914). A vida pessoal tinha contornos de saltimbanco, uma vez que tanto precisava de viver com familiares como de se isolar em quartos alugados. No capítulo profissional, não era dos livros que extraía rendimento - em vida publicou apenas "Mensagem" e três obras em inglês -, mas sim do trabalho como tradutor e a escrever cartas comerciais em inglês ou francês. Vai participar em tertúlias literárias no café A Brasileira (mas também no Martinho da Arcada) com amigos como Almada Negreiros, Mário de Sá-Carneiro ou António Botto, transformando-se em elemento preponderante do Modernismo que, em 1915, participa na revista Orpheu (dirige mesmo o segundo e último número em parceria com Mário de Sá-Carneiro) e, em 1924, ajuda a lançar a Athena - aqui publica poesia em seu nome, mas também nos dos heterónimos Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis. Pelo meio conhece Ofélia Queirós que ficará na biografia do poeta como a única namorada da sua vida. Conhecem-se em maio de 1920, quando a então jovem de 19 anos entra no escritório onde trabalha Pessoa para ser datilógrafa, mas a morte do padrasto, o regresso a Lisboa da mãe do poeta e a questão de Ofélia passar a viver mais longe representam demasiado peso, pelo que a relação parece acabada em novembro de 1920. A mãe morre em 1925 e Pessoa passa a viver na rua Coelho da Rocha, aqui produzindo milhares de páginas de obra dispersa e variada: poesia, textos filosóficos e políticos (chega a escrever contestação e críticas a Salazar e à ditadura), teatro, contos (alguns deles policiais), crítica literária, traduções e até horóscopos. Sim, porque na referida carta de 1935 a Adolfo Casais Monteiro, o poeta escreve sobre o seu gosto por astrologia e pelo ocultismo: "Creio na existência de mundos superiores ao nosso e de habitantes desses mundos, em experiências de diversos graus de espiritualidade, subtilizando até se chegar a um Ente Supremo, que presumivelmente criou este mundo."
Escreve sempre muito, muitas vezes no café Martinho da Arcada, e em diferentes superfícies, sejam cadernos ou anúncios, na parte de trás de cartas, em panfletos, papel com o selo das firmas para as quais trabalha ou simples folhas soltas. Charles Robert Anon e Jean Seul serão outros dos nomes que integram a extensa lista de heterónimos. Em 1929, retoma o relacionamento e as cartas trocadas com Ofélia, mas é um amor platónico. As bebidas alcoólicas tornam-se uma companhia constante na vida de Pessoa, algo que acabará por apressar-lhe o fim. Internado no hospital de São Luís dos Franceses a 29 de novembro de 1935, o poeta morre no dia seguinte, aos 47 anos.
A obra assinada por Fernando Pessoa ou pelos seus heterónimos já aqui teve diferentes presenças: por exemplo, eu li um excerto do "Livro do Desassossego", assinado por Bernardo Soares, a 9 de abril de 2020; mais tarde, a 15 de junho, nova leitura de parte da obra com assinatura de um heterónimo, dessa vez com "A Espantosa Realidade das Coisas", na voz de Sandra Escudeiro; a 15 de julho foi a vez de Armando Liguori Junior apresentar "Se Te Queres Matar Porque Não Te Queres Matar?", de Álvaro de Campos; com assinatura do próprio Pessoa, "Ó Sino da Minha Aldeia", inserido na obra "Ficções do Interlúdio", foi a leitura proposta por José António de Carvalho a 21 de agosto; a 14 de dezembro, Amélia Olivia Iliescu leu "Ao Longe, Ao Luar", de Fernando Pessoa.
No caso da leitura de hoje, a carta assinada por Maria José, que seria uma jovem tuberculosa de 19 anos com uma corcunda, só foi publicada após a morte de Pessoa. Tem conhecido interpretações variadas, como a de Maria do Céu Guerra, e esteve já na origem de uma curta-metragem intitulada "Adeus Senhor António", de Júlia Buisel.
O texto hoje proposto por Patrícia Adão Marques terá sido escrito por Pessoa no começo dos anos 30 do século passado.
Patrícia Adão Marques estreou-se em leituras por aqui a 29 de março de 2022 com "Eu Sei, Mas Não Devia", de Marina Colasanti, seguindo-se "Mãe, Eu Quero Ir-me Embora", de Maria do Rosário Pedreira, no dia 4; "Vivo de Facto em Tempos de Escuridão", de Bertolt Brecht, a 11 de abril; "Um Adeus Português", de Alexandre O'Neill, a 18; a 23 de abril, Dia Mundial do Livro, o "Cântico Negro", de José Régio; e, a 4 de maio, "Dia de Descanso", poema de Fernando Lemos. Porém, conforme revela a sua nota biográfica, tem um longo e variado trabalho no universo da Cultura. "Cofundadora do Grupo TEMA-Mafra e membro da Direção do Teatro Independente de Oeiras, onde iniciou o percurso como atriz em 1996, é licenciada em Comunicação Empresarial pela Escola Superior de Comunicação Social, tendo feito formação artística em 2001/02 na ACT - Escola de Atores. Os estudos continuaram em ações promovidas por entidades como Chapitô, Teatro dos Aloés, Produções Fictícias", entre outras, sem esquecer "um curso de três meses no Michael Chekhov Acting Studio em Nova Iorque".
Por outro lado, "da sua experiência teatral constam passagens pelo Teatro A Barraca, Companhia do Chapitô, Teatro Mário Viegas, Teatro Villaret e Teatro Independente de Oeiras". O seu trabalho foi desenvolvido "em mais de 40 produções", tendo sido "dirigida por encenadores como Maria do Céu Guerra e Rita Lello (em A Barraca), Helder Costa, Carlos Thiré, Gina Tocchetto, Rui Rebelo, José Carlos Garcia, John Mowat - nestes quatro casos no Chapitô e para os mais novos -, Rita Lello, Moncho Rodriguez, António Pires, Frederico Corado, Carlos d'Almeida Ribeiro (no Teatro Independente de Oeiras), Lourenço Henriques, Durval Lucena" e outros.
Mas não se esgota aqui a sua atuação, pois Patrícia dispõe de "vasta experiência em teatro" para os mais novos, "incluindo musicais". No grande ecrã, a sua participação estende-se a filmes como "Quarta Divisão" (Joaquim Leitão), "A Corte do Norte" (João Botelho) ou "Os Imortais", de António-Pedro Vasconcelos. Em televisão há, por exemplo, a sua presença "no elenco fixo da novela "Ninguém como Tu", da TVI; a colaboração com o canal Q; as séries "Inferno" e "Inimigo Público", mas também "Bem-Vindos a Beirais", "Ministério do Tempo" ou "DaMood".
Outras vertentes da sua atividade são a locução e a dobragem "desde 2003. Neste capítulo sobressaem títulos como 'As Crónicas de Nárnia' (Disney e FOX), 'Handy Manny', 'Big Hero' e 'Violetta' (todos da Disney), neste último caso "dando voz à protagonista na versão portuguesa". O seu interesse e a sua atenção à poesia foram decisivos para que tenha "um canal no YouTube com vídeos" em que se apresenta a recitar e que está acessível aqui.
Multipremiada na área da realização de curtas-metragens, venceu o Prémio Melhor Curta-Metragem Portuguesa no Festival Massimo Troisi em Itália (2003) com "Coquelux - A Vingança das Galinhas" (realizado em parceria com o amigo e colega André Nunes) e o Prémio Melhor Vídeo no Festival Internacional de Avanca (2015), neste caso graças à curta "A Adorável Dor de Nunca te Ter" (parceria com Nuno Figueiredo), com base numa peça de Marguerite Duras, acessível aqui. Desse ano de 2015 é também a sua estreia como encenadora "com um musical infantil para o Grupo TEMA - Companhia de Teatro de Mafra".
Formação foi algo a que se dedicou entre 2008 e 2012 com "cursos e workshops" muitas vezes dedicados aos mais novos, com exemplos como "Workshop de Teatro para Crianças na ACT; curso de teatro na Oeiras International School; aulas em Montalegre ou no Teatro Independente de Oeiras". Atriz, locutora, dobradora, tem sido também produtora neste último teatro.
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