Livro de José Saramago lançado em 2009, "Caim" é a escolha do jornalista Ricardo Figueira para a leitura de um excerto. A obra do Prémio Nobel da Literatura foi atacada pela Igreja Católica, mas logo nos pouco mais de 10 dias nas lojas superou vendas de 70 mil exemplares.
"A minha intenção é colocar em causa e questionar - não ao próprio Deus, mas à Humanidade que o inventou", afirmou José Saramago a propósito da sua relação com Deus e da obra "Caim", num vídeo da agência EFE realizado em 2009, altura da publicação do livro. No livro, Saramago redime Caim do assassínio do irmão Abel, considerando Deus como "autor moral" do crime ao desvalorizar o sacrifício proposto pelo próprio Caim. "Deus não é uma pessoa de fiar", disse o escritor no referido vídeo.
Na cerimónia de apresentação, Saramago começou por afastar quaisquer cenários de controvérsia. "Não procurem os hematomas, tenho a pele bastante dura", avisou. "E esta será a única alusão à suposta polémica que se lançou no próprio dia em que o livro foi posto à venda. E que se desenvolveu em vários tons a mando da Igreja Católica e com a execução dos seus homens de mão, ou dos seus jornalistas de mão, e de gente movida por interesses e rancores pessoais", defendeu.
A Igreja Católica considerara que o livro era "uma operação publicitária" e, pela voz de Manuel Marujão, então porta-voz da Conferência Episcopal Portuguesa, acrescentara: "Um escritor da dimensão de José Saramago deveria tomar um caminho mais sério. Pode fazer críticas, mas entrar no género das ofensas não fica bem a ninguém, e muito menos a um Prémio Nobel", indicou. O autor referira-se à Bíblia como "um manual de maus costumes, um catálogo de crueldade e do pior da natureza humana", considerando que "sem a Bíblia, um livro que teve muita influência na nossa cultura e até na nossa maneira de ser, os seres humanos seriam provavelmente melhores". Falando de "um Deus cruel, invejoso e insuportável, que existe apenas nas nossas mentes", dissera que o livro não iria gerar problemas junto da Igreja Católica "porque os católicos não lêem a Bíblia". "Admito que o livro pode irritar os judeus, mas pouco me importa", sintetizara. O rabino Elieze du Martino, então representante da comunidade judaica na capital portuguesa, rejeitara essa avaliação. "O mundo judeu não vai escandalizar-se com os escritos de Saramago nem de ninguém", resumiu. "Saramago desconhece a Bíblia e a sua exegese. Faz leituras superficiais da Bíblia", criticou. Mas, na apresentação da obra, o escritor demarcou-se desse tipo de argumentos contrários ao seu trabalho. "Como se eu tivesse alguma obrigação de fazer leituras simbólicas [da Bíblia]. Não sou especialista na Bíblia, não sou teólogo, Deus me livre", exclamou, provocando gargalhadas a quem assistia. "Além disso, era preciso saber que leitura simbólica faria eu, porque elas são várias e objeto de discussão entre os teólogos para se saber quais são as mais válidas. E isto não acabará nunca, enquanto houver Vaticano e esse edifício assustador chamado Igreja Católica vai continuar", apontou. Considerando que a polémica fora "uma espécie de fartar-vilanagem", o autor também sublinhou o facto de ter trazido "coisas boas" como "artigos sérios, objetivos, respeitosos - poucos, mas os suficientes para me darem uma grande alegria". E exemplificou com os casos dos que foram escritos por Vasco Graça Moura, Inês Pedrosa e pelo professor Carlos Reis. E o resto? "O resto, sem querer parecer vaidoso, estou acima de tudo quanto digam de mim. Não estou acima de tudo o que digam de bem de mim, isso recebo com alegria e gratidão; agora, tudo quanto é desqualificação e todos os tons..." Satisfeito ficou José Saramago por ver que os leitores "não se deixaram intimidar com todo este arraial", regozijou-se com os mais de 70 mil exemplares vendidos em pouco mais de 10 dias e com a perspetiva de outras duas edições, uma de 10 mil e outra de 30 mil, colocando a tiragem "em 110 mil exemplares num tempo recorde". Tudo isto, na opinião do escritor, deixava a obra séria com que não enganara os leitores a salvo "de todas as canalhadas que se façam à sua roda e da minha pessoa".
Não era a primeira vez que se gerava discussão por causas religiosas à volta de uma obra de Saramago. Com "O Evangelho Segundo Jesus Cristo" ficaria tristemente célebre a ação censória exercida por Sousa Lara, conforme aqui no blog foi lembrado quando o escritor foi tema a propósito da leitura de "Levantado do Chão", a 20 de abril.
"Escrevi-o em quatro meses com uma semana passada no hospital", lembrou Saramago sobre "Caim". "E escrevi-o numa espécie de exaltação a que não chamarei mística por motivos óbvios, mas numa espécie de febre", acrescentou, recordando que também "A Viagem do Elefante", começado antes, foi escrito nessa fase. "E considero que é do melhor que escrevi em todos os aspetos."
Editorial Caminho
"A história dos homens é a história dos seus desentendimentos com deus, nem ele nos entende a nós, nem nós o entendemos a ele", escreve Saramago.
Ricardo Figueira é jornalista há cerca de duas décadas, reside na cidade francesa de Lyon e aqui trabalha para o canal Euronews. Já realizou em colaboração uma curta-metragem, cujo argumento escreveu. É também autor de fotografias, participou em várias exposições e nos últimos tempos tem igualmente "escrevinhado umas coisas", tentando um primeiro romance.
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